sexta-feira, 18 de junho de 2010

O cão e as lágrimas.

O cara começou a escrever tardiamente. Talvez por isso usasse tantas vírgulas, tinha sede de expressar, parecia querer custar a acabar. E longeva foi a sua obra, tantos livros escritos em tão pouco tempo. Ateu, comunista, ah velho ranzinza, cheio de suas genialidades, descrevia milagres humanizados de forma fantástica, no sentido primordial da palavra. Uma inventividade e uma capacidade de descrição que muitos não alcançariam. Quem pensaria nos fios arrebentando depois da tão improvável jornada da Península Ibérica? Quem mais inventaria um cão que chora, cúmplice da única pessoa não afetada pela branca e estúpida cegueira dos homens? Simples, preferia a companhia do mar, dos ares do campo, da sua eterna Pilar. O dia começa triste. Sou um dos - mudos - cães que chorará por hoje. O homem se despede com um artifício que relutava em usar. Vai, mestre. Aqui, ficamos nós, com este dilacerante ponto final.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Sobre o quase.

Um macaco recebe um presente. Rasga o papel colorido, fica com a fita e vai embora. Não é culpa do presente. Ele é mais que aquela caixa fechada. Nem do macaco. Sozinho ele não consegue sair do escuro. Mas guardar a fita é, inconscientemente, lembrar do que poderia ter sido.

Paralelos.

O ano era 1965. Francisco tinha 23 anos e, naquela noite, acordou de sopetão com uma idéia. Acendeu uma vela, iluminando o quarto e suas paredes cheias de papéis rabiscados. Sobre o criado mudo estava o velho dicionário, herança de um primo distante do seu pai. Tomou um gole de água, pegou uma caneta e começou a escrever. Ainda ecoavam em seus ouvidos as canções de Noel. No peito, a angústia que só o silêncio é capaz de causar. Na cabeça, apenas um nome. Derramou em poucas linhas a dor que vinha do estômago, que por pouco não lhe saía pela boca. Em breve, o mundo passaria a venerar Francisco e seus escritos. Todos ouviriam a sua voz. Quando aquele texto completou 18 anos, em meio à urgência do caminho para a maternidade, um casal escutou no rádio o bendito nome. Nascia uma bela menina.

(…)

Fred ganhou um violão do pai. Naquela época, já começava a ensaiar os primeiros poemas, sempre embalados pelo som que chegava à sua janela. O vizinho, rico, tinha acabado de comprar uma vitrola. Fred ouvia de graça as sinfonias clássicas, os garotos de Liverpool; mas gostava mesmo quando o vizinho saía e a sua mulher tocava as músicas de um fulano com nome de santo. Jorge, se não me engano. Quando a vitrola se calava, o jeito era contar estrelas. E todas as noites, antes de dormir, ele contava incansavelmente as mesmas estrelas, só para ter certeza de que nada tinha saído do seu lugar.

(…)

O menino sempre fugia de casa no fim do dia e caminhava muitos quarteirões até a porta de uma escola. Não estudava ali, apenas gostava de olhar as meninas que saíam a caminho de casa. Uma delas em especial. Um dia ele chegou sorrindo, bem diferente do seu jeito de sempre sorrir. Tinha inventado uma coragem para falar com ela, mas não sabia ainda o que iria dizer. Talvez fosse mais fácil escrever para ela, mas uma hora ou outra aquilo teria que sair do papel. Sabe-se lá a que preço (deve ter perdido um ano de vida, ou ganho uma úlcera), deu um passo à frente. Ela, que sempre o via ali parado, não se assustou. Aceitou o avanço como um elogio. De perto, ele gostou ainda mais dos seus pés de menina, dourados, e do jeito como encolhia os ombros, talvez para se desculpar por ser tão bonita. Ainda estava embriagado com aquele cheiro quando viu o minúsculo sinal que ela carregava na mão direita. Ah, aquele sinalzinho. Salve o velho Fred, salve, salve a música: teve vontade de contar todas as estrelas daquele corpo. E sim, como previu Francisco, ela era de deixar mudo um violão.