quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Profecias russas.

De todas as profecias, as Russas são as que mais me agradam. Poucos países passaram por tão grandes transformações e reformas. Há a experiência dos tantos ciclos. E se cada vidente sabe realmente o que o destino reserva para ele e para os seus? E se, a cada noventa e sete anos, ou a cada qualquer-múltiplo de séculos, as linhas se mostrarem reservadas à fatídica repetição? Fico pensando o que é melhor: viver a curiosidade da confirmação - apenas para darmos o crédito ao escriba, ou torcer pelo erro. Se há algum padrão nesse emaranhado de possibilidades é que, depois de cada guerra sangrenta, novas vidas brotam do solo. Há sempre o novo herói, a nova revolução a viver. Tem sido assim. Assim tornará a ser. Dessa vez, você é a revolução que o profeta descreveu. Adormecida, desavisada, talvez desconheça o que já foi escrito. Por isso, só dessa vez, torço para que Lenine esteja enganado. Mas apenas na sincronia do tempo.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O sol.

Há tempo vinha caminhando sob o mesmo céu raso, de nuvens tão pesadas que daria para alcançar com as mãos, se não estivesse curvado. Pretensiosos, os chumaços de negro algodão acreditavam que conseguiriam derramar mais lágrimas que aqueles olhos que iam fitando o concreto. Ledo engano. De cima, não dava para ver que apontava para o mesmo chão um largo sorriso. Não se importava de ficar molhado. Aliás, caminhar na chuva era uma das maiores liberdades que podia ter. Tampouco estava lá, sob aquela cúpula negra. Viajava. Estava a salvo, onde não havia fumaça, nem injustiças. Gritos, só os de contentamento. E lá ia ele, tranquilo, sob o sol inocente e doce daquele lugar chamado Davi.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Além da janela.

Acordou cedo naquele dia. Aliás, como de costume, tinha passado a noite de olhos abertos, contemplando a grande bola amarela pendurada sobre sua cabeça. Os ecos dos sonhos já começavam a dar lugar aos caminhões, passarinhos e mendigos que, aos poucos, iam lhe contando as horas. Aquele era um dia importante. Olharia pela última vez por aquela janela. Não precisava mais dela. Para que, se já sabia o que iria encontrar? Olhar para ela era enxergar, ao mesmo tempo, um passado distante e um desagradável presente. Como uma criança, imaginou que aquela cena era apenas um frágil quadro de vidro. Uma realidade presa entre dois mundos, o de dentro e o de fora. Lembrou do livro que estava lendo. Faria como o afogado, que visitara mares distantes e profundos, onde os peixes são cegos e os búzios morrem de saudade. Navegaria, quem sabe, num grande transatlântico - como o de Gabriel – até avistar algum lugar 97 vezes maior que o seu povoado. E assim criou coragem para dar a volta e descobrir como é o mundo além da janela. Morto já não estava. Qual criança, já podia começar a viver.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O cão e as lágrimas.

O cara começou a escrever tardiamente. Talvez por isso usasse tantas vírgulas, tinha sede de expressar, parecia querer custar a acabar. E longeva foi a sua obra, tantos livros escritos em tão pouco tempo. Ateu, comunista, ah velho ranzinza, cheio de suas genialidades, descrevia milagres humanizados de forma fantástica, no sentido primordial da palavra. Uma inventividade e uma capacidade de descrição que muitos não alcançariam. Quem pensaria nos fios arrebentando depois da tão improvável jornada da Península Ibérica? Quem mais inventaria um cão que chora, cúmplice da única pessoa não afetada pela branca e estúpida cegueira dos homens? Simples, preferia a companhia do mar, dos ares do campo, da sua eterna Pilar. O dia começa triste. Sou um dos - mudos - cães que chorará por hoje. O homem se despede com um artifício que relutava em usar. Vai, mestre. Aqui, ficamos nós, com este dilacerante ponto final.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Sobre o quase.

Um macaco recebe um presente. Rasga o papel colorido, fica com a fita e vai embora. Não é culpa do presente. Ele é mais que aquela caixa fechada. Nem do macaco. Sozinho ele não consegue sair do escuro. Mas guardar a fita é, inconscientemente, lembrar do que poderia ter sido.

Paralelos.

O ano era 1965. Francisco tinha 23 anos e, naquela noite, acordou de sopetão com uma idéia. Acendeu uma vela, iluminando o quarto e suas paredes cheias de papéis rabiscados. Sobre o criado mudo estava o velho dicionário, herança de um primo distante do seu pai. Tomou um gole de água, pegou uma caneta e começou a escrever. Ainda ecoavam em seus ouvidos as canções de Noel. No peito, a angústia que só o silêncio é capaz de causar. Na cabeça, apenas um nome. Derramou em poucas linhas a dor que vinha do estômago, que por pouco não lhe saía pela boca. Em breve, o mundo passaria a venerar Francisco e seus escritos. Todos ouviriam a sua voz. Quando aquele texto completou 18 anos, em meio à urgência do caminho para a maternidade, um casal escutou no rádio o bendito nome. Nascia uma bela menina.

(…)

Fred ganhou um violão do pai. Naquela época, já começava a ensaiar os primeiros poemas, sempre embalados pelo som que chegava à sua janela. O vizinho, rico, tinha acabado de comprar uma vitrola. Fred ouvia de graça as sinfonias clássicas, os garotos de Liverpool; mas gostava mesmo quando o vizinho saía e a sua mulher tocava as músicas de um fulano com nome de santo. Jorge, se não me engano. Quando a vitrola se calava, o jeito era contar estrelas. E todas as noites, antes de dormir, ele contava incansavelmente as mesmas estrelas, só para ter certeza de que nada tinha saído do seu lugar.

(…)

O menino sempre fugia de casa no fim do dia e caminhava muitos quarteirões até a porta de uma escola. Não estudava ali, apenas gostava de olhar as meninas que saíam a caminho de casa. Uma delas em especial. Um dia ele chegou sorrindo, bem diferente do seu jeito de sempre sorrir. Tinha inventado uma coragem para falar com ela, mas não sabia ainda o que iria dizer. Talvez fosse mais fácil escrever para ela, mas uma hora ou outra aquilo teria que sair do papel. Sabe-se lá a que preço (deve ter perdido um ano de vida, ou ganho uma úlcera), deu um passo à frente. Ela, que sempre o via ali parado, não se assustou. Aceitou o avanço como um elogio. De perto, ele gostou ainda mais dos seus pés de menina, dourados, e do jeito como encolhia os ombros, talvez para se desculpar por ser tão bonita. Ainda estava embriagado com aquele cheiro quando viu o minúsculo sinal que ela carregava na mão direita. Ah, aquele sinalzinho. Salve o velho Fred, salve, salve a música: teve vontade de contar todas as estrelas daquele corpo. E sim, como previu Francisco, ela era de deixar mudo um violão.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

O ano novo chinês

Ele nunca imaginou que viajaria sozinho. Mas ali estava, por sua própria conta e risco, passeando pelo sul da França, numa cidadezinha cujo nome não lembro agora. Caminhava por aquelas vielas, que de alguma forma lhe pareciam familiares, já esquecendo aquela costumeira saudade do seu país. Sentado na calçada de um pequeno bistrot, tinha ainda mais certeza de que já estivera por lá. Até um pequeno hotel do outro lado da rua lhe trazia flashes de outra época. Não era dado a esses lados místicos, mas resolveu entrar na onda e acreditar que já fora um pequeno francês a jogar bola por aquelas ruas de calçamento. E aí abre-se um parêntese: só em outra vida mesmo, porque nesta, nunca chutou uma única bola em linha reta. Queria pedir uma taça de tinto francês, mas olhava para o cardápio e não conseguia escolher. Também não queria dar o braço a torcer e deixar o garçom perceber que não sabia mais que um punhado de palavras na língua local. “Un bière, s'il vous plait”, foi o máximo que conseguiu dizer, com seu sotaque que denunciava a todos que não era dali. Foi quando ouviu uma música estranha. Pessoas cantavam ao longe, certamente já embaladas pelo alto teor alcoólico. Em uma pequena rua, encontrou uma festa que mais lembrava um carnaval. Aliás, carnaval mesmo era a variedade de comidas, cores e estilos diferentes que havia ali; de homens usando cartolas a senhoras vestidas de gueixa, uma mistura bizarra. Não me pergunte o que fazia uma festa de ano novo chinês no meio daquela cidadezinha da Provence, mas sendo essa vida a mais pura ficção, aqui vê-se de tudo. Ouvia línguas que iam do espanhol ao japonês, quando uma voz lhe pareceu familiar. Não exatamente uma voz, mas um sotaque. Não era possível que ali, naquele festim diabólico, de repente pudesse se sentir tão em casa. Virou-se e viu uma jovem mulher, cigarro na mão, cercada de amigos. Sorte dela que não viaja sozinha, pensou. De longe, observou a leveza com que dançava, o jeito como sorria com o canto da boca. Tentou imaginá-la de cabelos soltos, mas ela ainda não queria se mostrar inteira. Às vezes, mais parecia uma menina, de tão à vontade. Talvez já tivesse morado ali, talvez apenas gostasse daquele tipo de festa - ou caía na terceira opção, a do teor alcoólico. Ele se aproximou e pediu fogo, pretexto para deixar que percebesse de onde vinha. E conversaram sobre todas as coisas, de cinema a numerologia, enquanto ele silenciosamente ria do fato de nadar um oceano inteiro para morrer na beleza de sua própria praia. Nunca foi bom em citações, mas lembrou uma que diz: desculpem-me as gringas, mas saber dançar o coco é fundamental. (Ou algo assim.) Já quase amanhecia quando se despediram. No último instante, ele já tinha pensado noventa e sete vezes em chamá-la para conhecer o resto da cidade. Com sorte ela teria pensado o mesmo. O ano novo podia ter começado bem naquela hora.

sábado, 22 de maio de 2010

O novato

O rapaz acabara de entrar para o time principal de investigadores da polícia. Já no primeiro dia, estava determinado a demonstrar que assimilou bem os ensinamentos da academia. Sabia que era só um garoto, mas tinha certeza de que iria se dar bem, afinal tinha sido o primeiro da sua turma. Na entrada, disseram que ele passaria 3 meses na companhia de um parceiro mais experiente. Não ficou tão empolgado assim em acompanhar um policial mais velho, mas não podia reclamar. Era um sonho que se realizava. Vinha de uma família de 3 gerações de policiais e seria tão famoso quanto seu avô, que fora "macaco" contra o grupo de Lampião. Não eram nem oito da noite quando receberam uma chamada. Que sorte, já no primeiro dia iria investigar um caso de verdade. Nada daqueles exercícios teóricos e chatos do tempo de aspirante. Chegando ao local indicado pelo rádio, encontraram a vítima ainda viva. Um homem de aproximadamente trinta anos, sentado na sala de casa, com uma faca cravada nas costas. Os policiais tentaram falar com ele, acalmá-lo, mas qualquer coisa que dissessem seria mentira. A ambulância demoraria a chegar. Perdido nos últimos pensamentos, o homem olhava fixamente para a porta com um ar pesado, de quem sabe que sairia por ali sem vida. O novato começou a olhar cada detalhe da cena do crime, ao que o tira (desculpe, precisava usar a palavra tira, mesmo sem nunca ter entendido porque os tradutores brasileiros gostam tanto dela) mais velho passou a questionar, ensaiando uma versão tupiniquim do Sherlock com seu fiel escudeiro:

- O que você vê, garoto?

- Duas lesões. Uma frontal, lado esquerdo do peito. Outra nas costas, perfuração do lado direito, uma faca continua cravada na vítima. Não há sinais de luta, a porta não está arrombada. 3 copos de cerveja sobre a mesa.

- Correto. E o que isso quer dizer?

- A vítima conhece o assassino.

- Errado. Você nunca conhece alguém até essa pessoa decidir realmente mostrar quem ela é.

O homem já não respirava.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Sobre luzes, sombras, Bertóias e afins

Já há algum tempo ele observava as formas. Quem não se encantaria? Qual milagre divino este da luz, captada e refratada pelos corpos, traduzindo suas cores e curvas? Nasceu num mundo onde películas ainda espelhavam a beleza, imortalizavam momentos. Vive um universo em que sombras definem volumes, onde Modiglianis, Di Cavalcantis, Starcks e Campanas alimentam a alma. Não há como fugir: somos seres visuais. Numa refeição, a apresentação é o primeiro tempero. Até a natureza se desdobra para tornar tudo agradável às lentes de quem ama. Lembrou-se do grande arquiteto, que sabiamente transferiu para a sua obra as curvas que os homens instintivamente procuram. Fantástico esse universo do equilíbrio e desequilíbrio, das simetrias e das proporções Áureas, que iludem e brincam com a nossa percepção. Ele mesmo já tivera a oportunidade de fixar o olhar num mesmo corpo e presenciar as nuances que sofria com o passar das horas, dos caprichos de uma alvorada. Eis o dilema: poderia um objeto permanecer belo na total ausência da luz? Aí que está a graça. A beleza não se resume à forma. É preciso captar o conteúdo, o imutável. E quando se viu novamente cercado do escuro, perto da forma desejada, perguntou: como posso descobrir a tua essência? Ela, que também não o conhecia, sugeriu apenas: vamos conversando.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Vermelho

Entrou no bar meio sem cor. Pálido, ainda machucado. Trouxe consigo quatro iguais, pois tinha não coragem de encarar aquela vida sozinho. A luz difusa do lugar não permitia identificar os rostos, nem as cores. Mas sempre que piscava, permanecia o flash da sua última visão. O vermelho. Não sabia dizer o porquê daquela fixação com a danada da cor. Talvez porque foi a primeira que viu depois que voltou a abrir os olhos. Se é verdade que vivia diante de um grande caleidoscópio, sempre que olhava pelo pequeno buraco, insistentemente procurava o vermelho. Gastou alguns dias rodando a cidade, fitando os próprios passos verdes, imaginando qual calçada estaria enfeitada de vermelho. Levantou e foi ao banheiro. A luz fluorescente ofuscou seus pensamentos. Lavou o rosto e percebeu que tinha passado tanto tempo distraído que começava ele mesmo a recobrar a cor. Sentou-se à mesa e pediu mais uma. Riu com os amigos, olhou em volta e começou a ver graça no preto, no rosa, nos amarelos pendurados na parede. Por alguns instantes admirou o desfile das cores que iam e vinham entre as mesas. Ficou feliz, afinal não precisaria mais andar olhando para o chão. O vermelho já tinha cumprido o seu papel. Achou por bem não se despedir
(sonhar é manter-se vivo) e saiu apenas dizendo:

_ Obrigado vermelho, a gente se vê por aí. Ladeira acima ou ladeira abaixo.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Enquadramentos

Tinha dias em que se cansava do todo. Sempre fora um cara simples, bastava-lhe o pouco. Ora, tantas vezes já tinha visto "pra sempres” de vidro cumprirem seus inevitáveis destinos. Tantas outras vigiou o relógio apenas para descobrir que a hora sempre chega, mas os minutos que a precedem já se tinham perdido. Não se encaixava mais nesse mundo que não deixa sobrar o mínimo tempo necessário para viver. Não iria empurrado na massa, balindo e sorrindo, sem saber o que espera à frente. Não queria essa busca incessante por milhões de cores se, hoje, duas delas já lhe trariam satisfação. Se pudesse viver apenas pedaços de tudo aquilo que vinha acontecendo, lidaria somente com os pequenos problemas. Sorte daquele que enxerga moinhos, quando apenas moinhos há para enfrentar. Tomou o caminho contrário. Seguiria o exemplo do cineasta, que usava óculos porque precisava de enquadramentos. Verdade. Sem eles, há o risco de se perder em meio a tanta informação, no todo. Daí a importância dos detalhes, daí a invencibilidade dos pequenos prazeres, daí o valor das efêmeras felicidades. Estava triste, sim. Mas cada dia é um capítulo singular. Amanhã tentaria o hoje, o agora, o segundo, o click. Sairia para fotografar.

domingo, 18 de abril de 2010

Todas as palavras contra uma.

No banco de trás, o pequeno menino admirava a paisagem borrada através do vidro lateral. Deixou-se fascinar pela beleza das cores, ora vermelhas, ora roxas. Embalado pelo balanço do carro, dormiu. Sonhou. E no seu sonho viu um homem mais velho. Jamais tinha visto aquela barba, aquele cabelo. Mas havia algo nele que lhe era familiar. Como se pode sonhar com a vida de outra pessoa? Foi quando percebeu que sonhava com o próprio futuro. Estava em casa, sozinho, pensando justamente em tudo que tinha se passado na sua vida, desde o dia em que adormecera naquele banco de trás. Suas conquistas, suas paixões, suas manias. Pensou nas coisas que fez e nas que deixou de fazer; e dessas se arrependeu mais ainda. Pensou que se pudesse acordar novamente naquele banco de trás, mudaria sua história. Aquela era a idade de descobrir a importância e o significado das palavras. Evitaria, a todo custo, uma em especial. Uma palavra melindrosa, muitas vezes tomada como suave, mas que revela-se sufocante. Palavrinha tão insuportavelmente sem sentido que, quando proferida, nega a sua própria essência. Como podem apenas 8 letras ser responsáveis por tantos desencontros? Pensou nas vidas que não viveria por causa daquela maldita palavra. Percebeu que as coisas não ditas doíam sempre mais. Decidiu dizer o que houvesse a ser dito. A verdade? Sempre. Um elogio? Agora, por favor. Só a possibilidade de provocar um sorriso em outra pessoa já valeria a pena. Palavras podem ser doações. E ele doaria, deixando a cargo das outras pessoas fazerem com aquilo o que bem entendessem. Um solavanco no carro o trouxe de volta. Olhou para o pai, dirigindo calado. Tinha novamente a vida inteira pela frente. Não, não se renderia àquela palavra. Melhor: usaria todas as outras como armas para acabar com ela.

- Pai, falta muito pra acabar?

- Pra acabar o que, filho?

- O silêncio.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

De prato principal, pediu apenas uma palavra.

O sujeito se alimentava de palavras. Precisava, para viver. Achava beleza em cada uma delas: as delicadas, as grandes, as fortes, as tímidas. Ria-se com palíndromos, adorava as cacofonias, brincava de neologismos. Usava algumas com sabedoria, distribuía outras tantas sem se comprometer a criar estilo ou mesmo fazer sentido. E sempre, sempre guardava aquelas para momentos de escassez. Certo dia, como o menino que perde o interesse pelas suas bolinhas de gude, parou de ver sentido em enfileirar as letras. Enfadou-se tanto que resolveu jogar fora sua coleção e, sem olhar para trás, concentrou-se apenas em imagens. Durante um bom tempo, silêncio e abstração lhe deram uma falsa sensação de felicidade. Numa manhã qualquer, escondido atrás de uma imensa parede de ilusões, vermelhas, percebeu o volumoso dicionário. Olhou desconfiado para o velho amigo - coletivo de possibilidades - e passeou pelas páginas repletas de deja vus. Eram tantas palavras que não conseguia decidir. Sensação corriqueira, típica de quem se depara com um cardápio muito extenso. Já estava quase perdendo novamente o interesse quando, de súbito, uma opção lhe chamou atenção. Não era, nem de longe, a mais bonita, ou a mais pedida. Mesmo assim, ficou horas fitando insaciavelmente aquela suculenta palavra. Só ela despertava seu interesse. Só ela importava, no meio de tantas, inclusive destas. Se houvesse por ali um garçom, com a voz rouca e seu dedo tímido apontando para o menu, pediria aquilo que lhe causara tanta fome: reciprocidade.