segunda-feira, 24 de maio de 2010

O ano novo chinês

Ele nunca imaginou que viajaria sozinho. Mas ali estava, por sua própria conta e risco, passeando pelo sul da França, numa cidadezinha cujo nome não lembro agora. Caminhava por aquelas vielas, que de alguma forma lhe pareciam familiares, já esquecendo aquela costumeira saudade do seu país. Sentado na calçada de um pequeno bistrot, tinha ainda mais certeza de que já estivera por lá. Até um pequeno hotel do outro lado da rua lhe trazia flashes de outra época. Não era dado a esses lados místicos, mas resolveu entrar na onda e acreditar que já fora um pequeno francês a jogar bola por aquelas ruas de calçamento. E aí abre-se um parêntese: só em outra vida mesmo, porque nesta, nunca chutou uma única bola em linha reta. Queria pedir uma taça de tinto francês, mas olhava para o cardápio e não conseguia escolher. Também não queria dar o braço a torcer e deixar o garçom perceber que não sabia mais que um punhado de palavras na língua local. “Un bière, s'il vous plait”, foi o máximo que conseguiu dizer, com seu sotaque que denunciava a todos que não era dali. Foi quando ouviu uma música estranha. Pessoas cantavam ao longe, certamente já embaladas pelo alto teor alcoólico. Em uma pequena rua, encontrou uma festa que mais lembrava um carnaval. Aliás, carnaval mesmo era a variedade de comidas, cores e estilos diferentes que havia ali; de homens usando cartolas a senhoras vestidas de gueixa, uma mistura bizarra. Não me pergunte o que fazia uma festa de ano novo chinês no meio daquela cidadezinha da Provence, mas sendo essa vida a mais pura ficção, aqui vê-se de tudo. Ouvia línguas que iam do espanhol ao japonês, quando uma voz lhe pareceu familiar. Não exatamente uma voz, mas um sotaque. Não era possível que ali, naquele festim diabólico, de repente pudesse se sentir tão em casa. Virou-se e viu uma jovem mulher, cigarro na mão, cercada de amigos. Sorte dela que não viaja sozinha, pensou. De longe, observou a leveza com que dançava, o jeito como sorria com o canto da boca. Tentou imaginá-la de cabelos soltos, mas ela ainda não queria se mostrar inteira. Às vezes, mais parecia uma menina, de tão à vontade. Talvez já tivesse morado ali, talvez apenas gostasse daquele tipo de festa - ou caía na terceira opção, a do teor alcoólico. Ele se aproximou e pediu fogo, pretexto para deixar que percebesse de onde vinha. E conversaram sobre todas as coisas, de cinema a numerologia, enquanto ele silenciosamente ria do fato de nadar um oceano inteiro para morrer na beleza de sua própria praia. Nunca foi bom em citações, mas lembrou uma que diz: desculpem-me as gringas, mas saber dançar o coco é fundamental. (Ou algo assim.) Já quase amanhecia quando se despediram. No último instante, ele já tinha pensado noventa e sete vezes em chamá-la para conhecer o resto da cidade. Com sorte ela teria pensado o mesmo. O ano novo podia ter começado bem naquela hora.

sábado, 22 de maio de 2010

O novato

O rapaz acabara de entrar para o time principal de investigadores da polícia. Já no primeiro dia, estava determinado a demonstrar que assimilou bem os ensinamentos da academia. Sabia que era só um garoto, mas tinha certeza de que iria se dar bem, afinal tinha sido o primeiro da sua turma. Na entrada, disseram que ele passaria 3 meses na companhia de um parceiro mais experiente. Não ficou tão empolgado assim em acompanhar um policial mais velho, mas não podia reclamar. Era um sonho que se realizava. Vinha de uma família de 3 gerações de policiais e seria tão famoso quanto seu avô, que fora "macaco" contra o grupo de Lampião. Não eram nem oito da noite quando receberam uma chamada. Que sorte, já no primeiro dia iria investigar um caso de verdade. Nada daqueles exercícios teóricos e chatos do tempo de aspirante. Chegando ao local indicado pelo rádio, encontraram a vítima ainda viva. Um homem de aproximadamente trinta anos, sentado na sala de casa, com uma faca cravada nas costas. Os policiais tentaram falar com ele, acalmá-lo, mas qualquer coisa que dissessem seria mentira. A ambulância demoraria a chegar. Perdido nos últimos pensamentos, o homem olhava fixamente para a porta com um ar pesado, de quem sabe que sairia por ali sem vida. O novato começou a olhar cada detalhe da cena do crime, ao que o tira (desculpe, precisava usar a palavra tira, mesmo sem nunca ter entendido porque os tradutores brasileiros gostam tanto dela) mais velho passou a questionar, ensaiando uma versão tupiniquim do Sherlock com seu fiel escudeiro:

- O que você vê, garoto?

- Duas lesões. Uma frontal, lado esquerdo do peito. Outra nas costas, perfuração do lado direito, uma faca continua cravada na vítima. Não há sinais de luta, a porta não está arrombada. 3 copos de cerveja sobre a mesa.

- Correto. E o que isso quer dizer?

- A vítima conhece o assassino.

- Errado. Você nunca conhece alguém até essa pessoa decidir realmente mostrar quem ela é.

O homem já não respirava.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Sobre luzes, sombras, Bertóias e afins

Já há algum tempo ele observava as formas. Quem não se encantaria? Qual milagre divino este da luz, captada e refratada pelos corpos, traduzindo suas cores e curvas? Nasceu num mundo onde películas ainda espelhavam a beleza, imortalizavam momentos. Vive um universo em que sombras definem volumes, onde Modiglianis, Di Cavalcantis, Starcks e Campanas alimentam a alma. Não há como fugir: somos seres visuais. Numa refeição, a apresentação é o primeiro tempero. Até a natureza se desdobra para tornar tudo agradável às lentes de quem ama. Lembrou-se do grande arquiteto, que sabiamente transferiu para a sua obra as curvas que os homens instintivamente procuram. Fantástico esse universo do equilíbrio e desequilíbrio, das simetrias e das proporções Áureas, que iludem e brincam com a nossa percepção. Ele mesmo já tivera a oportunidade de fixar o olhar num mesmo corpo e presenciar as nuances que sofria com o passar das horas, dos caprichos de uma alvorada. Eis o dilema: poderia um objeto permanecer belo na total ausência da luz? Aí que está a graça. A beleza não se resume à forma. É preciso captar o conteúdo, o imutável. E quando se viu novamente cercado do escuro, perto da forma desejada, perguntou: como posso descobrir a tua essência? Ela, que também não o conhecia, sugeriu apenas: vamos conversando.