sexta-feira, 30 de abril de 2010

Vermelho

Entrou no bar meio sem cor. Pálido, ainda machucado. Trouxe consigo quatro iguais, pois tinha não coragem de encarar aquela vida sozinho. A luz difusa do lugar não permitia identificar os rostos, nem as cores. Mas sempre que piscava, permanecia o flash da sua última visão. O vermelho. Não sabia dizer o porquê daquela fixação com a danada da cor. Talvez porque foi a primeira que viu depois que voltou a abrir os olhos. Se é verdade que vivia diante de um grande caleidoscópio, sempre que olhava pelo pequeno buraco, insistentemente procurava o vermelho. Gastou alguns dias rodando a cidade, fitando os próprios passos verdes, imaginando qual calçada estaria enfeitada de vermelho. Levantou e foi ao banheiro. A luz fluorescente ofuscou seus pensamentos. Lavou o rosto e percebeu que tinha passado tanto tempo distraído que começava ele mesmo a recobrar a cor. Sentou-se à mesa e pediu mais uma. Riu com os amigos, olhou em volta e começou a ver graça no preto, no rosa, nos amarelos pendurados na parede. Por alguns instantes admirou o desfile das cores que iam e vinham entre as mesas. Ficou feliz, afinal não precisaria mais andar olhando para o chão. O vermelho já tinha cumprido o seu papel. Achou por bem não se despedir
(sonhar é manter-se vivo) e saiu apenas dizendo:

_ Obrigado vermelho, a gente se vê por aí. Ladeira acima ou ladeira abaixo.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Enquadramentos

Tinha dias em que se cansava do todo. Sempre fora um cara simples, bastava-lhe o pouco. Ora, tantas vezes já tinha visto "pra sempres” de vidro cumprirem seus inevitáveis destinos. Tantas outras vigiou o relógio apenas para descobrir que a hora sempre chega, mas os minutos que a precedem já se tinham perdido. Não se encaixava mais nesse mundo que não deixa sobrar o mínimo tempo necessário para viver. Não iria empurrado na massa, balindo e sorrindo, sem saber o que espera à frente. Não queria essa busca incessante por milhões de cores se, hoje, duas delas já lhe trariam satisfação. Se pudesse viver apenas pedaços de tudo aquilo que vinha acontecendo, lidaria somente com os pequenos problemas. Sorte daquele que enxerga moinhos, quando apenas moinhos há para enfrentar. Tomou o caminho contrário. Seguiria o exemplo do cineasta, que usava óculos porque precisava de enquadramentos. Verdade. Sem eles, há o risco de se perder em meio a tanta informação, no todo. Daí a importância dos detalhes, daí a invencibilidade dos pequenos prazeres, daí o valor das efêmeras felicidades. Estava triste, sim. Mas cada dia é um capítulo singular. Amanhã tentaria o hoje, o agora, o segundo, o click. Sairia para fotografar.

domingo, 18 de abril de 2010

Todas as palavras contra uma.

No banco de trás, o pequeno menino admirava a paisagem borrada através do vidro lateral. Deixou-se fascinar pela beleza das cores, ora vermelhas, ora roxas. Embalado pelo balanço do carro, dormiu. Sonhou. E no seu sonho viu um homem mais velho. Jamais tinha visto aquela barba, aquele cabelo. Mas havia algo nele que lhe era familiar. Como se pode sonhar com a vida de outra pessoa? Foi quando percebeu que sonhava com o próprio futuro. Estava em casa, sozinho, pensando justamente em tudo que tinha se passado na sua vida, desde o dia em que adormecera naquele banco de trás. Suas conquistas, suas paixões, suas manias. Pensou nas coisas que fez e nas que deixou de fazer; e dessas se arrependeu mais ainda. Pensou que se pudesse acordar novamente naquele banco de trás, mudaria sua história. Aquela era a idade de descobrir a importância e o significado das palavras. Evitaria, a todo custo, uma em especial. Uma palavra melindrosa, muitas vezes tomada como suave, mas que revela-se sufocante. Palavrinha tão insuportavelmente sem sentido que, quando proferida, nega a sua própria essência. Como podem apenas 8 letras ser responsáveis por tantos desencontros? Pensou nas vidas que não viveria por causa daquela maldita palavra. Percebeu que as coisas não ditas doíam sempre mais. Decidiu dizer o que houvesse a ser dito. A verdade? Sempre. Um elogio? Agora, por favor. Só a possibilidade de provocar um sorriso em outra pessoa já valeria a pena. Palavras podem ser doações. E ele doaria, deixando a cargo das outras pessoas fazerem com aquilo o que bem entendessem. Um solavanco no carro o trouxe de volta. Olhou para o pai, dirigindo calado. Tinha novamente a vida inteira pela frente. Não, não se renderia àquela palavra. Melhor: usaria todas as outras como armas para acabar com ela.

- Pai, falta muito pra acabar?

- Pra acabar o que, filho?

- O silêncio.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

De prato principal, pediu apenas uma palavra.

O sujeito se alimentava de palavras. Precisava, para viver. Achava beleza em cada uma delas: as delicadas, as grandes, as fortes, as tímidas. Ria-se com palíndromos, adorava as cacofonias, brincava de neologismos. Usava algumas com sabedoria, distribuía outras tantas sem se comprometer a criar estilo ou mesmo fazer sentido. E sempre, sempre guardava aquelas para momentos de escassez. Certo dia, como o menino que perde o interesse pelas suas bolinhas de gude, parou de ver sentido em enfileirar as letras. Enfadou-se tanto que resolveu jogar fora sua coleção e, sem olhar para trás, concentrou-se apenas em imagens. Durante um bom tempo, silêncio e abstração lhe deram uma falsa sensação de felicidade. Numa manhã qualquer, escondido atrás de uma imensa parede de ilusões, vermelhas, percebeu o volumoso dicionário. Olhou desconfiado para o velho amigo - coletivo de possibilidades - e passeou pelas páginas repletas de deja vus. Eram tantas palavras que não conseguia decidir. Sensação corriqueira, típica de quem se depara com um cardápio muito extenso. Já estava quase perdendo novamente o interesse quando, de súbito, uma opção lhe chamou atenção. Não era, nem de longe, a mais bonita, ou a mais pedida. Mesmo assim, ficou horas fitando insaciavelmente aquela suculenta palavra. Só ela despertava seu interesse. Só ela importava, no meio de tantas, inclusive destas. Se houvesse por ali um garçom, com a voz rouca e seu dedo tímido apontando para o menu, pediria aquilo que lhe causara tanta fome: reciprocidade.