terça-feira, 17 de maio de 2011

Não tão cedo.

Antevendo o descompasso, te digo:
Não tão cedo.
Não queres saber mais, viver mais?
Até que saia o sol, sempre é cedo.

Desta vez, disseste: fica.
À meia luz, já nem falava.
Eu há muito não reconhecia a dúvida.
Da abstinência que pressupõe o medo.

O que fica é a impressão
De que Petrarca estava certo.
E acertou, por duas vezes.

Em sua musa e em seu soneto.
Nós só vivemos três versos.
Até que sejam catorze, fica; ainda é cedo.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Sem saída

E achando que estaria mais seguro, encostou a bunda na parede. Até que ouviu aquele irritante e assustador barulho de furadeira.

terça-feira, 1 de março de 2011

Inquieto

O que te basta? Aquilo que apetece é capaz de saciar? O quanto? Bastar pode ser a medida exata, a pequena felicidade, ou simplesmente acomodação. Acomodado, jamais. Tudo na vida daquele menino era inquieto. Insatisfez-se tanto que nunca parou no mesmo lugar. Disperso? Talvez. Ou talvez o mundo fosse desfocado, pensava. Certo é que grande parte das coisas simplesmente não têm relevância para o seu olhar. Sonhou enquanto deu. E mudou de sonhos enquanto era tempo. Mas sempre há tempo. O tempo nunca basta; tampouco sobra. Mas sempre está lá, lembrando que a próxima hora vai chegar. Cansou do mesmo e do silêncio, cansou do quase, cansou das cores e das dessincronias. Basta. E quando já não basta, o jeito é mudar.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Profecias russas.

De todas as profecias, as Russas são as que mais me agradam. Poucos países passaram por tão grandes transformações e reformas. Há a experiência dos tantos ciclos. E se cada vidente sabe realmente o que o destino reserva para ele e para os seus? E se, a cada noventa e sete anos, ou a cada qualquer-múltiplo de séculos, as linhas se mostrarem reservadas à fatídica repetição? Fico pensando o que é melhor: viver a curiosidade da confirmação - apenas para darmos o crédito ao escriba, ou torcer pelo erro. Se há algum padrão nesse emaranhado de possibilidades é que, depois de cada guerra sangrenta, novas vidas brotam do solo. Há sempre o novo herói, a nova revolução a viver. Tem sido assim. Assim tornará a ser. Dessa vez, você é a revolução que o profeta descreveu. Adormecida, desavisada, talvez desconheça o que já foi escrito. Por isso, só dessa vez, torço para que Lenine esteja enganado. Mas apenas na sincronia do tempo.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O sol.

Há tempo vinha caminhando sob o mesmo céu raso, de nuvens tão pesadas que daria para alcançar com as mãos, se não estivesse curvado. Pretensiosos, os chumaços de negro algodão acreditavam que conseguiriam derramar mais lágrimas que aqueles olhos que iam fitando o concreto. Ledo engano. De cima, não dava para ver que apontava para o mesmo chão um largo sorriso. Não se importava de ficar molhado. Aliás, caminhar na chuva era uma das maiores liberdades que podia ter. Tampouco estava lá, sob aquela cúpula negra. Viajava. Estava a salvo, onde não havia fumaça, nem injustiças. Gritos, só os de contentamento. E lá ia ele, tranquilo, sob o sol inocente e doce daquele lugar chamado Davi.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Além da janela.

Acordou cedo naquele dia. Aliás, como de costume, tinha passado a noite de olhos abertos, contemplando a grande bola amarela pendurada sobre sua cabeça. Os ecos dos sonhos já começavam a dar lugar aos caminhões, passarinhos e mendigos que, aos poucos, iam lhe contando as horas. Aquele era um dia importante. Olharia pela última vez por aquela janela. Não precisava mais dela. Para que, se já sabia o que iria encontrar? Olhar para ela era enxergar, ao mesmo tempo, um passado distante e um desagradável presente. Como uma criança, imaginou que aquela cena era apenas um frágil quadro de vidro. Uma realidade presa entre dois mundos, o de dentro e o de fora. Lembrou do livro que estava lendo. Faria como o afogado, que visitara mares distantes e profundos, onde os peixes são cegos e os búzios morrem de saudade. Navegaria, quem sabe, num grande transatlântico - como o de Gabriel – até avistar algum lugar 97 vezes maior que o seu povoado. E assim criou coragem para dar a volta e descobrir como é o mundo além da janela. Morto já não estava. Qual criança, já podia começar a viver.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O cão e as lágrimas.

O cara começou a escrever tardiamente. Talvez por isso usasse tantas vírgulas, tinha sede de expressar, parecia querer custar a acabar. E longeva foi a sua obra, tantos livros escritos em tão pouco tempo. Ateu, comunista, ah velho ranzinza, cheio de suas genialidades, descrevia milagres humanizados de forma fantástica, no sentido primordial da palavra. Uma inventividade e uma capacidade de descrição que muitos não alcançariam. Quem pensaria nos fios arrebentando depois da tão improvável jornada da Península Ibérica? Quem mais inventaria um cão que chora, cúmplice da única pessoa não afetada pela branca e estúpida cegueira dos homens? Simples, preferia a companhia do mar, dos ares do campo, da sua eterna Pilar. O dia começa triste. Sou um dos - mudos - cães que chorará por hoje. O homem se despede com um artifício que relutava em usar. Vai, mestre. Aqui, ficamos nós, com este dilacerante ponto final.